Antes de seguir eu ficava jogada no rio, dizia. Assim, de olhos caídos na água, como se fosse possível um horizonte no reflexo do dia que me espelhava. A menina se desconjuntava, uma parte aqui outra acolá, um resquício do outro lado e nada podia ser inteiro e completo. Como que a água puxasse a face, a marca bordada de EP no peito da blusa.
Ficava ali a ver as ratazanas brigarem, e, em um mergulho completo dos bichos, quase aterrorizante, se podia ver que entravam por meandros de buracos, sumiam nas manilhas e desapareciam.
Nadavam sobre a minha imagem que se estirava no rio sujo, avermelhado, lilás e de cores que não conheço para encher a boca e dizer, verde verei, azul royal, ou de cobalto, mercurial, lembrava.
O rio enfiado no cimento deslizava descontente para um fim desconhecido. Era uma reta castigada por obrigação de seguir a um derradeiro estágio e se perder na outra ponta, no outro lado da cidade.
Como eram bonitas as ratazanas, eram livres os meus animais de estimação, pareciam quase seres humanos sobre o lodo estranho e fétido, desenhava lembranças. A voz saia sozinha, uma voz que queimava o dia, trazia o passado: Elas polidas, elas limpas como o meu uniforme.
Saia plissada, blusa arrumada que se passava várias vezes porque o algodão entortava, a dizer que amarrotava no ferro quente. Não havia sapato de verniz, era um coro cheio de gordura, sebo que o fazia durar sem rachaduras. As minhas amigas não conheciam esse modo de cuidar, elas tinham às fivelas soltas todo o descompromisso com a escola.
Eu não, acreditava que seria uma rata feliz, que teria um trabalho de ser gente, e conseguiria. No parapeito daquela passagem, - não era ponte, não era nada que os engenheiros daquela época não entendiam nada de encontros, mas de retirada -, debruçava o tempo.
Eu era aquela menina feliz, uma rata feliz contava para si o imundo recanto limpo da rua dos chorões que tocavam com suas cordas finas o rio presente, o rio partido, o esgoto vivo e triste da cidade.
Faltava a aula para demorar nas águas, mergulhar na lama do esgoto com minhas amigas.
A escola não entenderia a importância do olhar e sentir por ignorar que a beleza tem a inteligência e a verdade, o que causaria verdadeiro ódio competitivo entre o que fosse bom e o mau para a serventia e uso. Trágico pensar assim. O belo do qual se fala e um que se constrói, que se torna escolha, que é perda e é chegada.
Ficava me imaginando na rua com a carteira escolar, aquela coisa ou uma escrivaninha, uma mesa, um lugar com guarda-sol e sucos para eu me dedicar a alguma coisa que pudesse confiar, algo como salvar as minhas monstruosas ratazanas do rio cheio de chorões. Ela pensava que poderia trazer um banco ali e estudar na rua pública. Era pública, era sim.
Ver a natureza convergente de todas as casas a somar-se com um rio que anda embaixo, que se mistura e que se perde na ranhura de todas as gentes. É tão feia as fezes. Não fosse os chorões forçados, debruçados não teria motivos de atravessar o céu por entre seus galhos. Talvez ficasse pouco menos, quem sabe as ratazanas não seguissem felizes.
Parece que há um conclave natural entre tanta fedentina e árvores, rio, e ratas - minhas amigas.
Nunca lhes trouxe pão ou coisa outra, por mesmo não ter o que trazer mesmo para mim, mas por precaução: não se deve humanizar os animais.
Acho isso de todo estranho. A gente se animaliza ou humaniza?
Minha amiga Noeli, pequeno nascimento do mal, ela jogava tijolos, pedras, até lápis eu a vi jogar.
Queria e muito infernizar a vida infernal dos bichos, tremelicar as águas duras, feita de nata que a vida gordurosa da cidade cria. Não seria mais ignorante. As minhas perdas seriam valiosas. Ganharia uma vida em meio ao lixo sombrio como uma rata da cidade.
Mas a escola é como uma promessa, algo que diz para ir para seguir e encontrar alguém, de realizar um bem, que nela existe isso, um bem a ser descoberto. Por isso abandono os bichinhos da água, do tempo, dos buracos da cidade e sigo para a escola até me tornar o que sou, uma pessoa qualquer que caminha em cima de esgotos, de rios imundos onde a beleza nada.
Tão pública era Maria como a sua escola que vez e outra ela recordava, sonhava tão longe desse tempo, imaginava fechada no canal igual ao rio que passa.
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